Que os mortos ressuscitem ou o Passado volte a ser Presente.
Samuel Johnson, Da tristeza
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?
Machado de Assis, Círculo Vicioso.
Acontece com todos. De vez em quando, por belo que esteja o dia, isto não afeta a rigidez de nosso mau humor. Às vezes é pior; é triste. Assim somos. Toda pequena sonata de felicidade carrega uma nota de tristeza, ainda que abafada pelo resto da orquestra. E eu não posso ficar triste. Quando fico, penso em coisas estranhas. Perco a vontade de encher a cara, em acordar cedo para correr, e ainda em fazer exercícios durante o dia; penso em fazer a barba, o futebol não tem tanta importância, os filmes da tarde na TV parecem interessantes e uma salada de legumes parece um prato saboroso. Terrível demais para que dure muito tempo.
Mas tudo isso é pra dizer que acabei de terminar temporadas de duas séries, dois dramas tristes, com finais diferentes. Não vou falar ainda quais são as séries, para que os que não viram não relacione os finais. O que importa é que um deles era absolutamente triste e o outro relativamente feliz. O absolutamente triste não deixa dúvidas: assista com um lenço na mão! Mesmo a seres como eu – cujas lágrimas não banham necessariamente a tristeza – a garganta engulha. É preciso ver com cuidado. Já o final relativamente feliz não deixa você saber realmente se foi bom para os personagens; apenas que, dadas as circunstâncias, poderia ter sido bem pior. Para isso, bastaria que as coisas permanecessem com estavam.
E esse é o ponto que eu quero chegar: quando estou naquele estado além da mera tristeza cotidiana – aquele em que ela se faz perceber pelos nossos gestos, pela nossa maneira de falar –, sempre há alguém me lembrando do miserável que não tem consolo, do desgraçado que sofreu um acidente, dos famintos e necessitados. Poderia ter sido bem pior. Como se fossemos pessoas mesquinhas por querer possuir até mesmo a tristeza que não nos é um direito, pois não somos tão desgraçados.
Não é preciso muita lógica para perceber falhas neste modo de pensar – sim e não, melhor e pior, se arrepender do que fez ao invés do que não fez. Qualquer ato é uma dimensão de realidades não concretizadas. A réplica é muito óbvia, e isso me desconsola mais ainda: poderia ter sido bem melhor.
É terrível pensar em como poderia ser, tendo como modelo a vida dos outros que achamos que estão bem. Esquecemos que nem toda tristeza fica marcada na cara e deixamos de pensar que cada um é desgraçado à sua maneira. Isso fica explícito em filmes como Um Homem Sério (A Serious Man, com temas d’O Livro de Jó) e nas duas séries tristes mencionadas, House e A Sete Palmos (Six Feet Under).
Há um momento em A Sete Palmos que a desgraça domina a série de tal maneira que nós mesmos ficamos desconsolados: não sabemos de quem nos compadecer. Não há um personagem que esteja bem o bastante para que se sustente o desejado argumento de que podia ser bem pior. É um pior que o outro. Mas quando penso em quem estaria numa situação melhor – e não falo somente da série –, ocasionalmente vejo a desgraça íntima que os corrói. Todos somos vítimas da vida: a dor ataca a todos, apesar de não o fazer ao mesmo tempo.
Há um falso equilíbrio neste modo de pensar – poderia ser pior, mas também melhor. Comparar as situações é inevitável, mas também inconveniente, uma vez que não podemos sentir pelos outros. E por isso é tão difícil entender os maltratados que renunciam de sua vingança ou a ira gratuita de quem parece não ter nenhum problema, ainda que nós mesmos agimos assim. Os outros sentem a sua própria dor, uma “dor original” – que gera o desconforto, a agonia, a ojeriza, a piedade ou até mesmo o prazer dos que estão ao redor. Da mesma maneira, a alegria que sentimos pelos outros, se genuína, é nossa; o próprio compadecimento é uma dor que pertence somente a quem a sente. O máximo que podemos fazer aos condenados é imaginar em nós mesmos sua dor ou alegria e tentar confortá-los ou comemorar junto.
Ainda estou vendo o resto das séries; espero mais tristeza. Finais felizes geralmente acabam comigo. Isso não significa que finais tristes me deixem melhor ou que fico assim com todos eles. É que só existe final feliz quando se pára de contar no meio. “E viveram felizes para sempre” se trata apenas de um começo e só existe amor eterno quando ele se acabou cedo.
Não fico triste com todos os finais, mas os verdadeiros finais são sempre tristes.
Paulo Raviere
de fuder!!!!!
ResponderExcluirPuta que pariu, Paulinho!!!
ResponderExcluirO que?
ResponderExcluirÉ... inda bem que a gente ainda pode ir por bar.
ResponderExcluirOh God ! Paulinho tu fostes tão realista. Acho que já sei com quem devo afogar minhas lágrimas ...
ResponderExcluirPééédrinho, tu escreve muito bem!
ResponderExcluirLembro que uma vez estava discutindo com alguém sobre a sua habilidade,
e a pessoa falou: "Ahh, ele fez letras... óbvio que sabe escrever bem."
E o meu argumento foi: há uma diferença entre escrever bem, e escrever corretamente. E tu, creatura, faz os dois muito bem!
"E eu não posso ficar triste. Quando fico, penso em coisas estranhas. Perco a vontade de encher a cara..."
Já vi que tu está quase sempre feliz, sempre que te vejo tu está morrendo de bebo! ;p
Anne, não chores mais (no woman, no cry)!
ResponderExcluirNane, o pior é que lá em letras tinha um povo meio analfabeto. :P
Tem 20 dias que eu não bebo uma gota sequer de álcool.
De qualquer forma, brigado pelo elogio, cara de pavio.
podia ter sido mais ou menos!
ResponderExcluir"só existe amor eterno quando ele se acabou cedo"
ResponderExcluiressa é uma máxima sem contestação
Também não gosto de finais felizes.
ResponderExcluirOlha isso que eu li essa semana:
ResponderExcluir"Não existe felicidade nem infelicidade neste mundo, existe comparação de uma com a outra, só isso. Apenas aquele que atravessou o extremo infortúnio está apto a sentir a extrema felicidade. É preciso ter desejado morrer para saber como é bom viver".
Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo.
Grande livro!
Lendo este texto, lembrei-me de Kafka: Deus é o cara que criou o homem pensando no suicídio. Ou estava de mau humor.
ResponderExcluirBem, adoro Jó e não sabia que a personagem (que Bloom compara a Hamlet) inspirou uma personagem de filme. Ponto.
Que texto legal! Falou a nossa língua, porque de certo tal idéia já nos passou pela cabeça.