Amanhã terei aula de Direito Penal Especial Aprofundado e o professor solicitou a leitura de três artigos da Revue de Sciences Criminelles sobre o tema da aula. Eis que abro o arquivo com o primeiro texto e me deparo com o seguinte título: “Le Sadisme n’est pas um droit de l’homme” (O Sadismo não é um Direito Humano). Longe do facebook por um fim de semana, abro as atualizações de Brunê e há um link sobre a nova campanha da CNBB no Brasil transformando Lula-lá na reencarnação de Herodes por ser favorável a um projeto de lei acerca dos direitos humanos, bastante inovador para a sociedade brasileira que ainda guarda um ranço absurdo de preconceito e hipocrisia. A ligação mental feita entre os dois textos: a discussão em torno dos direitos humanos e o sexo.
Minha primeira reação ao ler o cabeçalho da matéria francesa foi gargalhar, pois não imaginei que franceses soubessem o que é ‘osadia’, quanto mais o que é sadomasoquismo. Voilà, achei engraçado esse ser o tema da minha aula de Direito Penal. Minhas gargalhadas ecoaram ainda mais alto na Berlioz ao ler o episódio que desencadeou o debate acerca do sadismo ser ou não um direito humano: “Um magistrado e um médico se entregavam com várias outras pessoas a atividades de sadomasoquismo, praticadas notadamente sobre a esposa do primeiro. Suas práticas tinham atingido tal nível de violência e de barbárie que foram proibidas pelos clubes especializados e eles tiveram que alugar locais especialmente providenciados para continuar suas atividades”. Que juiz safadinho, pensei! E subversivo, hein!! Ohlálá!!
Fiquei imaginando o que teriam Juliano e o Marquês de Sade a dizer sobre essa frase: sadismo não é um direito humano. Juridicamente falando, parece que a CEDH não salvaguardaria certas práticas sexuais. Parei uns segundos dando margem à imaginação e tentando classificar numa tabela mental o que pode e o que não pode (rs). Aí abro o link que achei no facebook de Brunê que me leva direto a um panfleto que a Igreja Católica vai fazer circular missa a fora dizendo que a Bíblia condena o homossexualismo como uma prática “abominável” e que Lula quer transformar o Brasil em um país sem Deus ao permitir uniões civis homoafetivas e adoção por tais casais.
Essa ligação opção sexual/Estado/Direito chamou minha atenção. Afinal, o que eu-sociedade tenho a ver com o que você-indivíduo faz entre quatro paredes? E o que o Direito-ciência do dever ser tem que regular na esfera sexual que é tão particular? E o que a opção sexual pode dizer a respeito de alguém que seja capaz de afetar seus direitos civis (ou penais, digamos assim)? Pra não cair no senso comum e ficar na base das piadinhas e críticas superficiais dei uma lida “jurídica” sobre esses dois eventos. A discussão sobre o sadomasoquismo na Corte do Tribunal europeu de direitos humanos é muito interessante e me convenceu sobre a intervenção do Estado em um assunto que seria, via de regra, privado. Não vou cansá-los com uma discussão aprofundada sobre o consentimento da vítima nas infrações penais, mas a Justiça tem sim a prerrogativa de intervir – e condenar – o sadomasoquista quando sexo deixa de sê-lo para se configurar evidente prática de tortura. Quanto aos limites que separam uma prática da outra, aí é com os nelsonrodriguinianos, estou por fora desse assunto, mas à parte as piadinhas que fiz no início desse texto, nenhum ser humano deverá ser submetido a tratamento degradante ou atentatório às suas integridades física e moral, ainda que o consinta. No caso em análise, o acusado alegara que sua condenação seria uma violação da Convenção Européia dos Direitos Humanos, primeiro porque a lei penal não tipifica sadomasoquismo, o que feriria o princípio da legalidade (mas tipifica lesão corporal ou coups et blessures). Mas o X da questão e da defesa era uma suposta violação ao direito ao respeito da vida privada (artigo oitavo da Convenção = sexo, orientação sexual e vida sexual inclusos).
Considerando a constante dificuldade de comunicação que tenho com meus colegas de mestrado, seja pela falta de vocabulário, seja pela diferença cultural, recorri a este blog pra escrever (em português, graças a Deus) sobre o tema. Minha mente está fervilhando de idéias (jurídicas, eu juro!!), mas algo me diz que direcionar esse post para o lado legal do assunto vai espantar os leitores. Bem me lembro de Camilinha me ouvindo a contragosto quando eu desembestava com meu falar jurídico… Mas escrevendo aqui eu me sinto menos frustrada por não conseguir me expressar satisfatoriamente em aula, mesmo estando certa de que ninguém vai comentar o texto e a maioria vai abandonar a leitura pela metade (Juh vai ler até o fim, mesmo o texto desembestando pro olhar jurídico da coisa…).
Então, cada pessoa tem a faculdade de conduzir sua vida como bem quer, inclusive praticando atividades tidas como de natureza física ou moralmente perigosas e prejudiciais. É a autodeterminação, a mesma autonomia pessoal que não considera crime a autolesão, que tolera o porte de drogas até certa quantidade para uso pessoal. Se você decide usar drogas, encher o corpo de piercings nos lugares mais estranhos, tentar suicídio, ir pra cama por dinheiro, tudo liberado! Por outro lado, traficar a droga, torturar os outros com agulhinhas-facas-e afins, auxiliar no suicídio de alguém ou comandar uma rede de prostituição, essas práticas são criminosas. Aí vem a questão do consentimento que, em resumo, não exclui a responsabilidade do autor da infração. O Vossa Excelência e o Doutor sadomasoquistas fizeram umas coisinhas modernas demais pra essa minha mente retrógrada e convencional, mas sob a autorização da vítima que parecia gostar do tratamento. A defesa alegou que “o Direito Penal não pode, em princípio, intervir no domínio das práticas sexuais consentidas que importam o livre arbítrio dos indivíduos”. A brecha encontrada pela acusação se deu no momento em que a mulher urrava de dor e pedia “piedade”, mas não era atendida. Juridicamente falando, o consentimento deixou de existir nesse momento e a condenação passou a ser legítima. Mas é aí o problema: isso significaria dizer que a existência de consentimento da vítima é suficiente para excluir uma condenação?
Pra ser bem honesta, ainda não entendi quem prestou queixa, mas tenho a impressão de que não foi a torturada. Pra ser mais honesta ainda, não sei como ela sobreviveu ou que diabos passa na mente de uma mulher pra se submeter às práticas que li. Mas vou me segurar pra não fazer juízo de valor, vou tentar ser estritamente jurídica!!! Lembrei de uma aula de Penal na UESB em que Kathiúscia explicou que não podemos usar anões como bolas de boliche, mesmo que eles aceitem. Do mesmo jeito que o trabalhador não pode abrir mão de certos direitos em seu contrato de trabalho consentindo em laborar fora das normas de segurança do trabalho, do mesmo jeito que o consentimento da vítima menor de idade não afasta a presunção de estupro ou que a retirada da queixa de violência doméstica não livra o agressor do processo, os anões assinarem contrato para aparecerem em emissão televisiva lançados contra pinos de boliche não exclui a responsabilidade da emissora pela violação da dignidade desses homens.
Há muitas razões que afetam o consentimento. Meninas que se prostituem para sustentar família, menores e adultos que trabalham feito escravos em plantações no interior do Brasil, esposas que apanham dos maridos diariamente porque precisam de casa/sustento/unidade familiar, tanta coisa influi no consentimento que é realmente um risco suficientemente grave interpretar que o consentimento da vítima extingue a responsabilidade do autor. Desolée pras mulheres que gostam de apanhar, mas a Corte não deveria ter hesitado em afirmar claramente que torturar e humilhar sexualmente uma mulher não reflete um direito humano (respeito à vida privada e à liberdade individual). Há jogos sexuais que não passam pela cabeça dos mais sádicos (quero crer), mas mesmo que passem, ninguém pode renunciar à dignidade humana, ao direito de ser humanamente tratado. A autonomia pessoal se limita pela dignidade da pessoa humana e o Direito precisa sim resguardar aquela que é a base de todos os outros direitos.
Retomando duas das perguntas que lancei no início: Afinal, o que eu-sociedade tenho a ver com o que você-indivíduo faz entre quatro paredes? E o que o Direito-ciência do dever ser tem que regular na esfera sexual onde quanto mais irregular, melhor? Acredito que há valores jurídicos que guiam todo ordenamento e sua base é o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, cada vez que houver ali um atentado, a ingerência estatal será legítima. A representação da noção da nossa própria humanidade perpassa a humanidade de todos os outros e é por isso que ninguém pode renunciar a ela. Aqui não se trata de interferir na prática sexual dos outros, não é que se proponha por essa linha de raciocínio uma tabela do que pode e do que não pode no sexo, já que prazer e dor são associações recorrentes e isso faz parte do julgamento pessoal. O foco jurídico é mais amplo e os princípios suscitados são gerais e abrangem um número de situações acima da liberdade sexual. É hermenêutica, ponderação de princípios, e se tiver que marcar em algum concurso público, não dá outra: princípio da dignidade da pessoa humana na veia!
O que quis abordar penalmente já foi dito em relação ao juiz e ao médico processados por furarem, costurarem, queimarem e cortarem a “mulher da relação” (nem mencionei que as provas que instruíram o processo são vídeos das brincadeiras a três). O que tenho pra falar civilmente é acerca da campanha da Igreja Católica no Brasil contra a legalização das uniões homoafetivas e da possibilidade de adoção por esses casais. Mas esse tema merece um post só dele, pois meu ponto de vista é tão tão apaixonado que me dá vontade de advogar no Rio Grande do Sul e escrever a respeito vai gerar um texto ainda maior que o do sadomasoquismo!
França.
Carolina Porto, mestrando em Direito.
Pra mim, se a pessoa consentiu, azar o dela.
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ResponderExcluirLeigo que sou, não acredito na violação de qualquer direito quando, de maneira consciente, escolhe-se faz o uso de um segundo direito que vá de encontro ao primeiro.
ResponderExcluirSe queres, então faça! ?
Entendo que a escolha e uso do ‘direito de escolha’(pessoais) possa sobrepujar o ‘direito inato’(humanos e afins), se estes forem mutuamente excludentes. Muito embora, eles continuem passíveis de serem colocados em julgo, como comentado no texto acima.
Imagine, pois, a complicação que não deve ser: depois de consumado o ato, ou mesmo durante o desenrolar, por ventura ocorrer um arrependimento e uma das partes querer parar... E aí? Ta valendo aquela permissão concedida no inicio ou já perdeu a validade? E mais, e se um dos envolvidos quiser parar, mas não mencionar isso, e alegar que não queria depois de consumado? Por esta omissão entende-se como permitido, ou foi infringida, mesmo não tendo reclamado?
Reformulando:
Se queres, ‘ou deixe claro o que quer e o que não quer ou deixe valer tudo’, ‘e somente se não fores abrir processo depois’, então faça!
Senhor Diego Dourado, adorei suas reflexões. Fico aqui me divertindo pensando no grau de seriedade (ou não) desse debate entre as quatro paredes do frio Tribunal europeu... As questões que coloca como leigo foram postas também por essa Corte e tenho certeza que seria muito mais divertido se o processo tivesse caído num órgão colegiado da Bahia. Mas aquém da ponderação de princípios ou do pode-não pode o que chama mesmo a atenção é que jurista é tudo sonso...
ResponderExcluirE aí, Juh, nesse nosso enrolado Beat da Beata vale tudo ou pas? rs
Sinhôr não. É doutor, o moleque.
ResponderExcluirOlhaí, parece que teve mais gente além de mim que leu o texto todo, viu?! E, ao que parece, outras milhares leram até pelo menos o septuagésimo sexto parágrafo!
eu li o ultimo o primeiro e algus 2 no meio, um otimo texto!
ResponderExcluirSão trezentos e quarenta e dois parágrafos até bem escritos!
ResponderExcluirAi, essas picuinhas morais/jurídicas...
ResponderExcluir1) Tenho sempre a impressão de que, "juridicamente", finge-se argumentar com mera lógica pragmática mas, na hora H, na hora da decisão do que é correto fazer, só descendo (ou será subindo? Não pra mim, que ainda sou amoral) para alguma concepção moral metafísica mesmo.
2) "Se a pessoa consentiu, azar o dela", Juliano? Parece óbvio que há consentimentos tão desesperados que não contam... É preciso admitir, acima de tudo, que não é sempre (e talvez nem tão normalmente), que nós estamos certos sobre nós mesmos, nossos objetivos, vontades, enfim, sobre o melhor pra nós. Uma pessoa que consente ser queimada, cortada, precisaria provar, antes de tudo, que tem consciência das consequências e que, SIM, acha que isto compensa, por alguma razão insondável. O ponto é que a chance é grande de ela estar pura e simplesmente fazendo algo do que se arrependerá amargamente. E não queremos isso pra ninguém, certo?
3) Não creio em "princípio de dignidade humana" ever. Se anões querem MESMO (e lucidamente) ser atirados contra pinos de boliche, então que sejam. Mas, como eu disse, eles precisariam provar que realmente querem um absurdo desses.
4) É difícil provar, em tempo real, que se quer coisas absurdas. Na PRÁTICA, a lei precisa agir com base no provável, de forma a maximizar o bem-estar. Então, vai dar no mesmo, quase. Proíba-se anões de serem bolas de boliche, e mulheres de serem queimadas voluntariamente. Corre-se o risco mínimo de podar a liberdade lúcida de minorias pra-lá-de-exóticas, o que é ruim, mas garante-se que pessoas-padrão não caiam em ciladas e/ou auto-enganos idiotas.