Sempre duvidei de Deus, nunca de suas obras. Já o Diabo, esse pervertido imoral, eu o conheço desde os meus dias de menino. Lembro que estes sentimentos atravessavam-me enquanto apreciava um bom chá de cadeira numa igrejinha domingueira. O que hoje nos ensinam os sacerdotes? Ainda crêem nas potestades que maculam o cotidiano? Por outro lado, como querem os Modernos, os Cientistas, se todo o mal aflora futilmente das práticas humanas, e não mais dos corações das almas e dos arcanjos, como guiar-nos sem um horizonte tangível?
Desejar o bem é uma estratégia que se justifica somente pelas mesmas engrenagens que o desejou. O bem não é útil nem prático, é demasiadamente custoso. Quando sobe o preço do dinheiro, dizem as bulas, dever-se-á queimar o café, queimar os excessos, queimar os filhos dos homens. É objetivo, técnico e útil; é largamente científico. Mas não creio que o certo é a muleta da verdade, da técnica. Padres e poetas almejam a preeminência de outros mundos, outras realidades. Estes infelizes nos lembram diariamente que tal bem, o dever-ser, são construções nossas, emergem juntamente com os homens que as fazem emergir, pois não existem à espera de sua descoberta, ao contrario, são criadas ordinariamente e naturalizam-se como verdades atemporais. Mesmo que seja, a virtude não precisa se comportar como os compostos atômicos. A vida e o que fazemos dela, para além do carbono, não está submissa aos caprichos de uma Maçã qualquer.
Os Modernos apresentaram-nos a um Deus cujas proezas desencantam todos os Santos. Faz-nos esquecer que tudo o que é, de outra forma seria se assim já não o fosse. Faz-nos esquecer que vida, beleza, tragédia, gênero e classe não são propriedades da matéria, que a realidade não é uma dádiva, mas uma construção coletiva validada conflituosamente pelas experiências dos homens. Cores, formas e leis insurgem da experiência do sujeito sem o qual nada se significaria. Perante isto, como acreditar numa única natureza? Lembro-me dos versos que uma vez invejei não escrever: “Nós o chamamos de grão de areia/mas ele não se considera nem grão nem areia./Vive perfeitamente bem sem um nome [...] Nosso olhar, nosso toque nada significam para ele./Ele não se sente observado e tocado./E o fato de que caiu no parapeito/é uma experiência nossa, não dele./Poderia cair em qualquer outro lugar,/sem saber se parou de cair/ou se continua caindo.”
Dos laboratórios mima a certeza de uma única verdade, um único mundo, uma única razão. Mas a fé sempre há de sussurrar a necessidade das obras do Pai, alicerçar-nos numa moral esclarecida, questionar o homem cuja existência se tornou um epifenômeno da sua própria história natural. Cobiçar este dever-ser não é uma questão de gramática social, como querem os especialistas, é semântica. Sejamos cautelosos com este esclarecimento totalitário, com esta ciência onipotente; sua luxuria ainda colonizará todas as nossas outras possibilidades de mundo.
Que os santos nos guiem contra um mundo onde perigosamente a verdade se confunde com o certo e o bem se dilui no útil.
Rodolfo Carneiro
Amém
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