Parte 1: Mozart Versus O homem da pintura rupestre
Avaliar as coisas de uma perspectiva histórica é sempre difícil – embora nós os historiadores objetem que útil e gratificante. Difícil, porque o passado é uma coisa que não está mais lá à mostra, e difícil também porque o passado não é igual ao presente, simplesmente.
Eu quero colocar a idéia de “artístico” (representação criativa do mundo) na esteira do tempo, fazer-lhe uma resumida crítica histórica. Bem, a “arte” muda no tempo, através das gerações e civilizações – até desembocar nalgum ponto onde não saberemos mais dizer se há ali cultura. Um ponto onde o humano deixa de ser humano. Para fins didáticos, vamos pôr as coisas em síntese numa escala cronológica:
As primeiras formas de vida na Terra surgem há torno de 3,5 bilhões de anos; mamíferos há cerca de 200 milhões de anos; e homens são uma coisa extremamente recente neste planeta: surgiram no último ato da existência, há aproximadamente 150 mil anos. Parece uma cifra enorme, e de fato é, se comparamos com as grandezas de tempo às quais estamos acostumados a lidar (horas, minutos, até segundos - neste apressado modo de viver que cultua a modernidade. Quando muito, falamos em mês, ou estação e ano. Muito, muito raramente fugimos para uma grandeza temporal além da do século). Mas, se considerarmos que, segundo as estimativas de nossos físicos, o universo tem cerca de 15 bilhões anos, então a história da nossa espécie não pode ser interpretada senão como recentíssima.
Mas, mesmo assim, as nossas conquistas “culturais” não estão igualmente distribuídas entre os nossos recentes 150 mil anos. Pelo contrário, quase todas as conquistas culturais estão nos últimos 10 mil anos, quando se inventou a agricultura. Por esta altura, é que surgem as cidades e com elas as civilizações. Mas são os últimos duzentos anos que dão mais a cara da nossa maneira “cultural” de vivermos hoje: direitos autorais, mercado global, comunicação à distância, ônibus, máquinas, direitos trabalhistas, igualdade perante a lei, etc.
É engraçado porque, biologicamente falando, a nossa constituição anatômica não difere em basicamente nada da do nosso antepassado de 100 mil anos atrás. As diferenças anatômicas entre nós e eles são tão miúdas – mas existem - que nem de raspão podem explicar o gigantesco fosso cultural que há entre as nossas maneiras de viver, isto é, a esteira de fomes e epidemias daqueles homens e mulheres nossos tatá-tata-tata... tataravôs e os nossos ônibus espaciais e computadores conectados instantaneamente com qualquer ponto do globo terrestre.
"Obviamente, não poderíamos pedir uma correlação pior entre o crescimento de um órgão biológico, o cérebro (que entre 2,5 milhões de anos e 100 mil anos atrás triplicou o seu tamanho de meio quilo para o 1,5 quilo atual) e as evidencias de seus supostos benefícios para a sobrevivência. Nossos ancestrais de 100 mil anos atrás já eram os humanos modernos, em termos anatômicos, com corpos e cérebros exatamente como os nossos. Contudo, ainda seriam necessários outros 90.000 anos para inventarem a agricultura; e 95.000 anos, para a civilização urbana" (MILLER, A mente seletiva, 2000).
As pessoas que argumentam sobre dignidade humana invariavelmente citam os grandes gênios artísticos: Shakespeare, Mozart, Beethoven, Renoir, etc. Mas que diferenças poderia haver entre Mozart e o ancestral das pinturas rupestres, além dos recursos e técnicas?
Juliano Santana Dourado
Agora falta o resto do texto.
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