12 outubro 2010

Vendaval

Um brevíssimo comentário num ensaio do alemão Joachim Kalka me chamou bastante a atenção. Em Dinheiro na Mão, publicado na revista Serrote, ele discorre sobre os modos de ver o dinheiro, entre outras coisas. O que era entidade física passa a entidade subjetiva. O dinheiro era algo deslumbrante, para se pegar e admirar, para se esconder dos ladrões. Os exemplos usados por Kalka dão conta de demonstrar isso: a sagrada Número Um do Tio Patinhas, o dinheiro amaldiçoado por Léon Bloy, o Zahir de Borges, e as moedas famosas da história e da literatura: as 30 de Judas, o dobrão de Ahab, a que condenou Luis XVI, durante a Revolução Francesa, por conter sua efígie.


Atualmente, não vemos mais o dinheiro dessa forma. As moedas, redondinhas, perderam parte de sua importância histórica; não se faz mais, por exemplo, moedas de ouro, cujo valor não é puramente simbólico, mas também está no próprio material. Hoje, no geral, as moedas valem apenas centavos. Foram trocadas pelo cartão de crédito, sem tanto brilho ou deslumbre, mas extremamente funcional. Daí, Kalka comenta:


A moeda é (de modo espantoso, tão logo nos damos conta do fato) um dos poucos objetos da percepção cotidiana (como o pão, o vinho, os sapatos, o cão, a faca, a própria lua) que nos ligam a velhos costumes e fantasias, num arco de séculos que alcança a Antiguidade.


Foi o comentário que me chamou a atenção. Entre os objetos da percepção cotidiana, a lua. Desde tempos imemoriais ela é deusa, objeto de inspiração e admiração: dama jamais tocada em sua rotina. Da lista de Kalka, apenas ela e o cão não são produto das idéias humanas. Mas o cão é domesticado; ela permanece imutável. Pode - podia – apenas ser vista. A percepção se dá por vários sentidos: poderia estar aí o cheiro das flores ou o barulho das abelhas; mas, analisando cada objeto isoladamente podemos vê-las ou tocá-las. Temo-nas como imagem antes de as termos como odor ou som. O sapato e a faca, nós usamos; o pão e o vinho, consumimos. Estão ligados aos velhos costumes. Enquanto a lua, a percebemos, desde a antiguidade, apenas por um dos cinco sentidos principais (pois os cientistas reconhecem outros mais). Está intrinsecamente ligada às velhas fantasias. Uma delas é tocá-la.

Esta fantasia inspira autores e obras de tempos diversos. A lista é gigantesca: destaco Ártemis, São Jorge, o mito do lobisomem, os ciclos lunares da bruxaria, a sonata de Beethoven, o Barão de Munchhausen, Cirano de Bergerac, Edgar Allan Poe, Jules Verne, Georges Méliès e o Pierrot Lunaire, até que finalmente, durante a Guerra Fria, a relação está consumada. Cravaram-lhe uma bandeira. Há quem diga que tudo não passou de um extraordinário golpe de publicidade, e que a lua continua intocada por estes homens maliciosos. A questão é que, tocada ou não, a fantasia perdeu um tanto de seu brilho. Ocorreu com a lua o inverso do que ocorreu com o dinheiro. Enquanto ele passou de entidade física para entidade subjetiva, a lua, por cotidiana que fosse, foi se tornando, com o passar dos séculos, objeto de dedicação da física. Enquanto a moeda redondinha desaparece, o satélite natural da Terra, de forma similar, vai sendo compreendido.

Paulo Raviere.

2 comentários:

  1. Desculpa a ignorância, mas não entendi porque o nome do texto ser vendaval.

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  2. É um texto muito maior. O título é só pra versão do blog.

    1 - Dinheiro na mão é vendaval.

    2 - Um dos argumentos para a teoria da lua intocada é que a bandeira dos EUA balança, mas não há ventos na lua. Logo, dizem, teria sido filmada na Terra.

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