Esta era pra ser uma das primeiras postagens, pois é justamente sobre o livro que batizou o blog. Não escrevi antes por causa da ânsia de outros afazeres. Na verdade, eu tinha planejado fazer uma série sobre grandes obras desconhecidas, como os livros de Schwob e de Baricco, ou O Terceiro Tira, mas as pesquisas de opinião contra-indicaram isto. Bem, para a alegria de todos que me perguntam de onde vem o nome do blog, ou dos leitores perdidos que deságuam por aqui, procurando um norte sobre o livro, falemos de John Kennedy Toole.
A história de Toole (1937-1969), autor de Uma Confraria de Tolos e de um romance juvenil chamado Neon Bible, é mais fascinante e triste que muitos dramas encontrados por aí. Basta saber que ele tinha problemas de identidade e que seu livro principal, que ele considerava uma obra-prima da comédia, foi recusado por várias editoras após insistentes tentativas de publicação. Disseram que o livro não falava de nada. Então a tragédia, talvez relacionada: Toole se mata. E o que se segue é um drama com requintes de humor negro. Thelma Toole, convencida da genialidade do filho único, insiste mais ainda na publicação do livro. Por acaso (sempre é por acaso), o livro cai nas mãos de Walker Percy, autor do quase-famoso The Moviegoer, que o adora. O livro de Toole é publicado e se torna a partir de então um cult, culminando num Pulitzer póstumo, em 1981. Roberto Bolaño, por exemplo, que me parece ser o escritor mais celebrado deste século que se inicia, o coloca em seu top 5, ao lado de obras como o Quixote e Moby Dick. Toole não reclamaria; teve seu gênio reconhecido.
A grande ironia é que o seu livro fala exatamente disso. A epígrafe mesmo, vinda de um ensaio de Swift, já diz que “quando aparece no mundo um verdadeiro gênio, podemos identificá-lo por este sinal: todos os estúpidos contra ele se unem em aliança”. Todos os editores se uniram contra ele em aliança e o vetaram. O Pulitzer lhe serviu como uma vingança tardia. Apesar de tudo isso, uma coisa há de ser reconhecida; quase todo grande escritor já teve uma grande obra recusada. Sem pensar: Joyce não conseguia publicar nada; Faulkner ficou com raiva do mercado editorial e resolveu esculhambar; Guimarães foi vetado por Graciliano e achou isso bom (o próprio Graciliano nos conta isso numa crônica formidável); Orwell foi barrado por Eliot e Proust, o maior do século, foi censurado por Gide, que depois teve que se explicar pelo resto de sua vida. Bem, Toole é realmente espetacular, mas evitemos compará-lo com estes autores (nenhum suicida, por sinal).
No romance, o gênio incompreendido é representado por Ignatius J. Reilly. Anti-heróico, ególatra, guloso, bonachão, paranóico, mimado, preguiçoso, sociopata, dono de costumes estranhos: desnecessariamente, vive sozinho com a mãe; freqüenta os filmes ruins do cinema apenas pelo prazer de criticá-los em voz alta durante a exibição; conversa numa linguagem antiquada às vezes incompreensível a seus interlocutores; jamais sai de Nova Orleans; não foge de brigas absurdas e hilárias. Devido a um acidente de carro, Ignatius tem que arrumar um emprego. Seus empregos envolvem interação com outras pessoas e, como já diz as chamadas de sessão da tarde, muita confusão. O livro é realmente genial, um dos mais engraçados que já li, contar mais sobre ele é um ato blasfematório.
Mas há ainda uma grande questão: a brincadeira com o ego do leitor, que Dostoievsky já realizara ao menos um século antes, em Crime e Castigo. O livro de Toole veladamente reforça as idéias de Raskolnikov sobre o vulgar e o extraordinário, onde ele explana que uma mente genial poderia passar por cima do numero que fosse de mentes vulgares, se quisesse. Porque não passar por cima de dez pessoas se isso poderá beneficiar dez mil? A questão é atual. Vemos isso constantemente na política, como ocorreu com os defensores de Pinochet, em todos os episódios do seriado House, ou na polêmica em relação à prisão de Polanski, gênio do cinema que foi preso recentemente. Convém julgar os gênios como pessoas comuns? Como discernir uma mente “genial” de uma “vulgar”? Há respostas. Para Ignatius, o mundo deveria se curvar a seus pés, enquanto Raskonikov, por sua vez, reage de maneira diferente, o que responde à segunda pergunta. Contar, novamente, seria blasfêmia.
A questão não explicitada por eles (os autores) é que quase sempre, involuntariamente, ao ler um livro, havemos de tomar os personagens por nós mesmos. Às vezes o protagonista, às vezes mais de um personagem. A brincadeira de Toole e Dostoievsky é transformar-nos em gênios, acima de toda a humanidade vulgar. Ao menos por alguns minutos, enquanto lia, fui vítima de uma conspiração das mais terríveis; estava acima de todos, e, por isso mesmo, me odiavam. A única saída possível era desprezá-los, minúsculos que eram, rindo-me aos prantos de toda aquela vulgaridade odiosa e efêmera.
Paulo Raviere
Assim como Walker Percy e Raviere eu tbm não consegui para de ler a obra de Toole. As imagens criadas a partir da simplicidade são legais e divertidas, vai nos envolvendo de acordo com as confusões do “ser extraordinário” Ignatius(rsrsrs boa sacada essa comparação com a teoria de Raskolnikov). Recomendo o livro e esse é um ótimo texto.
ResponderExcluirAhh... caso minha opinião conte por aqui Sr. Salomão, vc deveria sim falar sobre uma série de autores desconhecidos afinal O’Brian e Faulkner é do caralho.
Além disso, Toole cria uma teia narrativa de coincidências que converge no final tragicômico. Uma maravilha, qualquer dia eu releio.
ResponderExcluirGeo, eu poderia sim. Na verdade, já tinha até uma lista das obras. Mas Faulkner é bem famoso. Famoso demais, até o Nobel ele ganhou. Faulkner em outra categoria.
Rsrsrs... Reler Toole no dia que Uilião te pagar outro né?!
ResponderExcluirFaulkner ganhou o nobel é verdade, mas é complicado de encontrar as obras dele por aqui =P. Você poderia falar sobre o conto “Uma rosa para Emily” (genial). To esperando.
Não se paga por aquilo que recebemos como presente.
ResponderExcluirToole eu tenho que reler em inglês. Além disso, o meu em português Uilião DESTRUIU como presente.
ResponderExcluirEu li pouco de Faulkner... Ainda não criei coragem pra ler de verdade.
so self-important
ResponderExcluirUma Confraria de Tolos é dos melhores livros que já li. De humor original -- verdadeiramente HI-LA-RI-AN-TE --, incontrolável e cheio de comida nos bolsos, Ignatius Reilly parece não ter modelo anterior e é nome de um jocoso prêmio literário francês: Prêmio Ignatius Reilly de Melhor Livro Desapercebido. Pois foi o que aconteceu no Brasil. Recebeu uma edição e fim.
ResponderExcluirA arrogância de Reilly tem sim pontos de contato com a de Raskolnikov. Ambos são tremendos personagens, mas a lembrança de IR sempre me leva a rir. Achei que escreveste uma boa abordagem a este romance ESSENCIAL e o nome do teu blog me deixa louco de inveja!
Grande abraço.
Essa do prêmio eu não sabia. E tem também o Prêmio Bartleby pra obra inacabada. Que beleza. No Brasil eu já vi por duas editoras, Círculo do Livro e Record. E só.
ResponderExcluirO blog não é meu. Foi uma saga dos editores-fundadores até achar esse nome. Um deles até mandou fazer uma camisa com os nomes descartados. Lotou.
Abraço.
Que tolo eu sou, nunca terminei a leitura do livro de Toole!
ResponderExcluirUma Confraria de Tolos deve ser uma maravilha, já que Paulo fala do Ignatius tão emocionadamente quanto eu falo do meu Zaratustra.
Baricco é leve.
ResponderExcluirLeu Seda todo?
ResponderExcluirTomei vergonha na cara e deixei de preconceitos com a capa. Rsrsrs... Como o próprio Baricco diz o livro não é um conto, nem um romance. É simplesmente uma estória e uma das boas. Todas as sensações descritas me emocionaram, principalmente a carta hahahaha.
ResponderExcluir"Crime e Castigo" eu já reli. Pretendo reve-lo algum dia desses. Incrível, sequer imaginava q esse livro (Uma Confraria...) seria um clássico!
ResponderExcluirPois qdo o adquiri no antigo Círculo do Livro- q nem sei se ainda existe!- gostei da crítica á época se não me engano, feita pelo José Roberto Torero. Bem, isso foi em Janeiro de 1995 (!) eu era um adolescente devorador de livros e "Uma Confraria de Tolos" foi um dos livros q marcaram naquela fase maravilhosa. Qual não foi minha surpresa ao ler o blog do André Barcinski no Uol me deparei com um comentário sobre o livro e sobre seu autor JK Toole. Na hora me lembrei dele e fui na minha estante e lá estava meu exemplar: capa dura,um desenho representando o Ignatius (protagonista do livro) o cheiro inigualável de livro antigo e muita saudade... É disse para mim mesmo:
"é hora de reler essa grande obra"
Alguem tem pra vender ou trocar?
ResponderExcluirhttp://migre.me/5V3ZB Livro pra venda. Uma Confraria de Tolos
ResponderExcluirAqui tem o livro pra vender: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-699664615-uma-confraria-de-tolos-de-john-kennedy-toole-raro-_JM
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