18 outubro 2009

A bárbara de Eurípides e o Deus ex machina de Pasolini

A Medéia, uma das principais tragédias de Eurípedes, apresenta o personagem homônimo conhecido por muitos pelo epíteto da “mãe que matou os filhos para causar sofrimento ao marido que a trocou por outra”. Este epíteto não deixa de ser verdadeiro, porém reduzir o personagem a isto é um modo limitado de pensar. A lógica da vingança pura e simples de seu marido Jasão não convence a todos que se debruçam sobre o assunto e buscam entender a complexa personagem.



A Medéia é bárbara, em todos os sentidos. Primeiro no sentido grego da palavra, de estrangeira, por ela não ter aonde ir ao ser expulsa de Corinto pelo rei Creonte. E também pelo sentido adquirido da palavra, de brutal, de violenta, de sanguinolenta. Assim, sendo ela uma estranha numa terra mais estranha ainda, e tendo ela já acabado com o rei e a sua filha, que seriam a nova família de Jasão, talvez não haveria porque continuar a vingança. Ainda mais sendo os seus próprios filhos o instrumento com que esta vingança seria realizada, o que acarretaria em sofrimentos para ela própria. Um dos maiores mistérios sobre tragédias gregas refere-se à razão por que ela teria feito isso.

A história da Medéia teve várias versões, de Sêneca a Corneille, no teatro, além de adaptações para o cinema e até mesmo uma versão de Chico Buarque. Píer Paolo Pasolini, cineasta italiano, é responsável por uma dessas versões cinematográficas. Em Medea, realizada em 1969, ele insere uma discussão que pode ser esclarecedora de parte da incompreensão de caracteres da personagem. Talvez a razão de Medéia seja outra, de outro tempo ou tradição, que não se encaixa num raciocínio da lógica científica ocidental, quando retirada de seu contexto original.

É curiosa a cena trazida por Pasolini quando Jasão entrega a Creonte o velo de ouro. O valor da palavra do rei cai por terra, e sequer Jasão se importa, negando o valor do velo e da promessa. Num mundo (espaço-tempo) em que um velo de ouro não possuía mais valor, Medéia tampouco o possuiria, assim como sua união com Jasão.

Se o conflito das duas razões é irreconciliável, não pode restar símbolos da união dos dois. Os filhos de Medéia, uma união entre Jasão e ela, passam a ser tão impossíveis quanto um carro descer do sol e lhe dar carona, o que irremediavelmente remete ao carro de fogo de Elias, no segundo livro dos Reis (ou talvez o texto da Bíblia é que remete ao de Eurípedes; todos os textos se completam).

No filme, no lugar de um carro de sol, Medéia impede a aproximação de Jasão com um incêndio. Sabe-se lá qual seria o destino da heroína no filme, que não poderia continuar; possivelmente se deixaria consumir pelas chamas. A Medéia é impossível no mundo de Jasão e na era de Pasolini. Ela é ilógica e irracional – ou possuidora de outra lógica e razão.

Este carro de sol que aparece no final da Medéia é uma solução literária para a peça poder acabar. Esta técnica é bastante utilizada por Eurípedes e é chamada deus ex machina, quando algo divino ou sobrenatural – mesmo um personagem – aparece de repente e apara as pontas deixadas na história. Esta técnica pode ser usada em qualquer gênero literário, porém muitos críticos e escritores a consideram, no contexto da conteporaneidade, uma fraqueza técnica de autores sem imaginação que não conseguem acabar os seus livros.

O deus ex machina de Pasolini é outro, não no carro de sol, mas na morte de Glauce e Creonte. Enquanto na peça de Eurípedes o mensageiro conta que Glauce solta sangue pelos poros, que suas carnes se soltam de sua pele e que ela pega fogo antes de morrer, no filme de Pasolini, apenas o último “recurso” é utilizado. E isso para que seja apaziguado novamente num retorno à mesma cena, mas com conseqüências diferentes. Na nova cena os dois se suicidam, se livrando de sofrimentos inúteis, afinal, a morte seria inevitável, e ainda não havia a culpa católica naqueles tempos.

Eis então o deus ex machina de Pasolini: a edição do vídeo, que é o próprio deus ex machina moderno, e que pode ser usado para controlar não só as emoções do público, mas até mesmo suas convicções à respeito das coisas. Cada tempo com suas artimanhas...

Paulo Raviere
(colaboração de Tomas Mascarenhas)

5 comentários:

  1. Paulo,

    Pasolini é o cara do Decamerão, né?

    ResponderExcluir
  2. ~A arte imita a vida. Argumento: deus ex machina!
    A vida imita a arte. Argumento: deus ex machina!

    Não tenho a erudição do Paulo Raviere, mas tenho a opinião de que a maioria das pessoas ainda pretende que haja um "dentro" (na função de deus ex machina), que significa alg equivalente a Alma em todas as culturas. O "dentro" explicaria uma porção de coisas.

    No imaginário popular, o "sopro da vida" - raiz das motivações -, a idéia de que um fantasma (ou alma) nos anima o corpo foi a artimanha deus ex machina comum a todos os tempos.

    ResponderExcluir
  3. Pasolini filmou alguns desses clássicos antigos. Édipo, Decamerão, The Canterbury Tales de Chaucer, As Mil e uma Noites, o Evangelho de Mateus, adaptou aquele Sodoma de Sade. Não é o meu cineasta favorito, nem entre os italianos, mas tem sua importância.

    Realmente, um "dentro" apara as pontas da existência, à maneira do deus ex machina (apesar de serem coisas bem diversas, antes que alguém confunda).

    ResponderExcluir
  4. Paulo tem algo a ser observado na penúltima linha do segundo parágrafo!

    Jade

    ResponderExcluir
  5. Tinha mesmo. Já mudei. Você tá retada ein?

    ResponderExcluir