22 agosto 2009

Sob a razão

Sinto-me livre quando compelido a escolher entre o certo e o errado, consensualmente erro. Não sei se foi por esta sensação que alguns europeus abriram mão de suas existências no distante século XVIII. Mas se por isto morreram estão vingados. Agir com este caráter é agir de forma racional, apesar de aparentemente ser um absurdo.
E o que é ação racional?


Vilfredo Pareto, engenheiro do século XIX, deu um ambicioso contorno a questão. Supostamente, toda ação tem um fim desejado e um meio para efetivá-lo. Esta relação entre meios e fins acontece em duas dimensões, subjetiva e objetiva. Neste modelo a ação é racional quando há, simultaneamente, coerência causal entre as relações fins e meios nas as duas dimensões e entre si. Tomemos a ilustração que Raymond Aron usa no livro As etapas do pensamento sociológico: Carecendo de chuva, indígenas americanos (tipo os do Pica-Pau e não os dos antropólogos sérios) iniciam um processo específico visando resolver tal problema, o ritual da dança da chuva. Há uma relação lógica entre fins e meios subjetivamente. Na percepção do sujeito, dançar é o processo coerente para o fim desejado, no caso, a chuva. Mas esta ação não apresenta uma relação coerente externa ao indivíduo. Objetivamente, os fenômenos pluviais estão mais atrelados a questões referentes à pressão atmosférica, altitude e umidade do que a danças tribais.

Seguindo a mesma linha de raciocínio. Suponhamos um indivíduo tuberculoso que procura solucionar seu problema via Medicina Ocidental. Nesta situação, ir ao médico é o meio lógico para o fim cobiçado, sarar-se. E de fato a medicina o curará, espero. Se ao invés do Doutor de Medicina o enfermo procurasse um Rezador, sua ação ainda assim seria subjetivamente lógica. No entanto, objetivamente a ação tornar-se-ia não-lógica. Isto porque o resultado esperado (a cura) não é um produto conseqüente do processo escolhido (a pajelança), mesmo que o sujeito se cure ou que sem mais nem menos comece a chover. A ação é um produto lógico quando há conformidade entre os resultados obtidos e as possibilidades reais que o processo permite.

Segundo este paradigma, a ação racional somente é possível quando percebemos o mundo cientificamente. Estamos presos em um mundo, Carl Sagan é o nosso deus e O mundo assombrado pelos demônios é a sua bíblia.

A crença na superioridade deste modelo é um resíduo iluminista que assombra nossas mais profundas convicções cotidianas. Para o bem, para o bom e para o melhor são as direções que as virtudes da razão nos prometem. Penso de forma diferente. A racionalidade da ação fundamenta-se na forma como o processo é conduzido, e não no seu conteúdo substancial. O sujeito deliberadamente pode direcionar sua escolha para alternativas inoportunas. Perante o sutil, opta pelo vulgar; perante o conveniente, pelo impróprio; perante o belo e o certo, opta pela torpe e o errado. Preferimos um jarro, um marido, uma melodia ou um apartamento menos sofisticado do que é possível e ou é desejável. A ação em todos estes casos não é menos racional. E por quê? Por que a coerência das relações fins e meios, subjetivamente e objetivamente, encontram-se no próprio sujeito. Vejamos: O crédulo, a fim de pavimentar seu caminho para o céu, entrega suas posses ao bispo. Ele, o sujeito que crê, pretende validar e justificar para si a sua crença. Faz isto com seu ato financeiro. Ele compra um bem. A existência ou não do céu cristão é irrelevante para classificar sua ação. O fiel que quer se comprometer com a sua fé, solidificá-la e validá-la realiza o ritual do dinheiro. Subjetivamente pratica uma ação lógica de relação causal coerente entre fins e meios. Na esfera objetiva, apesar do próprio Pareto ratificar o caráter não-lógico desta ação, este momento também é lógico. É incontestável que o praticante sinta-se seguro, crente e comprometido com seus horizontes teológicos quando acredita que o dinheiro legitima a sua salvação. Pagar reforça seu voto de fé. A singularidade desta ação é a dupla justificativa no próprio indivíduo (objetivamente e subjetivamente). Ao contrário dos índios dançarinos, para o fiel, o produto da ação esperada é alcançado pelos meios praticados. A técnica dos índios não se justifica como ação racional porque a chuva, objetivamente, não é um fim que se encontra no sujeito.

Agir racionalmente não é agir inclinado para o melhor, para o certo ou o socialmente desejado. Tendemos a julgar as ações que nos cercam sem considerar as nuanças entre o conteúdo e a forma. E mais, viver sob a égide da razão não garante, na humilde opinião de quem aqui escreve, o desenvolvimento de uma pressuposta consciência social coletiva - volonté générale. Toda ação, mesmo quando circunscrita a uma complexa rede de coerção social, realiza-se ainda no indivíduo. Quanto mais racional uma prática, maior o poder de barganha dos sujeitos e maior a particularização de seus interesses. Este é ponto que nos interessa aqui. Temos interesses diferentes e a razão não consegue sufocar esta jogada.

Sofisticar os jogadores não mudará as regras do jogo.

Rodolfo Carneiro

15 comentários:

  1. Depois de um texto com a cara de Rodolfo, o último parágrafo é quase elogiável. Quase.

    Ora, por que viver sob a razão haveria de nos garantir o desenvolvimento de uma consciência social coletiva?

    A razão é parcial (injusta), é atributo de um orgão que não está nem aí para a verdade/realidade, para o mistério da vida em outros planetas - ou mesmo neste aqui, nem dá a minima para qualquer coisa que não diga respeito à função sobrevivência-reprodução [dos genes. Quando as pessoas vão aprender a ler Dawkins?] A vida funciona muito bem sem o cérebro, assim como funciona sem as fossetas loreais das serpentes de peçonha. As muitas outras espécies existentes são argumento forte contra o que quer que você tenha pensado.

    O cérebro. Um orgão programado para perceber com limitações, forjar ilusões e acreditar nelas.

    Dito com todas as letras, os homens que fazem ciência têm um cérebro similar ao dos homens que fazem dança da chuva. Eles têm exatamente o mesmo orgão tacanho, limitado, e deliberadamente empenhado em esconder do indivíduo os muitos mecanismos por trás do funcionamento do seu corpo.

    Assim, a ciência é uma mitologia, e os cientistas são mais ou menos uns crentes. E mais, amparados em suas idéias fixas, eles são terrivelmente arrogantes, exatamente como... crentes.

    Mas há diferença: o pensamento científico é, em suas limitações, autocorretivo. Já o pensamento não-científico (supersticioso ou religioso) não quer corrigir nada.

    Temos interesses diferentes (disse-o rodolfo, acertou em cheio) e a razão não consegue sufocar esta isso. Bem, isso deve ser... Ora!, a razão não existe para as teorias científicas, ou para refutar abrobrinhas religiosas!
    Ela existe precisamente para promover os interesses diferentes, porque interesses pessoais.

    "Sofisticar os jogadores não mudará as regras do jogo". Bem... a ciência é, pelo menos, a melhor mitologia que temos disponível. O caso não é o de mudar ou nãs as regras do jogo, mas que é unicamente por ocasião da ciência que temos descoberto quais são as regras que esse jogo tem.

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  2. A propósito, não existem ações racionais. As ações todas obedecem a instintos.

    A razão é apenas mais um instrumento dos instintos.

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  3. Juliano parece que nao leu o texto. Mas comentou bem.

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  4. O normal, o ideal, é ler a crítica somente depois de conhecer o objeto que ela critica. Alguns críticos, porém, se destacam; tem em suas críticas obras autosuficientes, quase arte. Temos Samuel Johnson, William Hazzlit, Saint-Beuve, Edmund Wilson.

    Julião aqui acabou por fazer uma crítica que o supera o seu objeto criticado. Só não vale um post porque este não é o "blog do Julião".

    O texto, por sinal, é insuportável. Só entrou porque a sua suportabilidade não foi usada como critério.

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  5. Definitivamente, vocês dois criticam com muito estilo! Sobretudo Paulo. (Eu só não vou me incluir também na contabilidade porque seres humanos gostam de às vezes fingir uma humildade que não têm).

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  6. volontê gênêra?
    Égide?
    nas as duas dimensões e entre si?
    ...
    ...
    entao, n li o texto de rodofo todo, entendi o q ele quis diser no 2o paragrafo e li o ultimo pq achei q ia ter um aforisma legal, foi q nem adiantar a parte da valsa em 2001, mas uma coisa eh bem verdade, isso aki devia ser o "blog do julão", e sobre o texto: é um dakeles que me faz perguntar "e daí?"
    a melhor contribuiçao de rodolfo pra esse blog foi o desaine grafico!

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  7. siiiiim!
    e a parada do jogo e dos jogadores pode ser uma metafora poética mas nao eh verdade!
    existiram, existem e existirão, varias mudanças em regras de jogo por causa da sofisticaçao de jogadores, Rodolfo entende de politica e bem sabe!

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  8. Mas quando um avião ou um pássaro cruza o céu, ele não está desafiando as regras da gravidade, está obedecendo.

    Não mudam as regras, mas as estratégias.

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  9. como falei:
    eh uma metafora poetica
    o que quero diser é: gravidade nao é um jogo é um fato, isolado numa circunstancia existencial, se vc quiser construir jogos a partir da gravidade eu entendo. uma quadra de futsal tambem nao é um jogo. me entende?

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  10. A propósito Ju, a razão obedece a instintos em indivíduos dentro do padrão da normalidade e Rodolfo Carneiro é um cara estranho, nada comum, apesar de os genes dele serem com muita probabilidade humanos.
    O texto é realmente insuportável Raviere, só entrou no blog porque Rodolfo é o dono do playstation, mas não vamos negar que esta coerente.

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  11. Bom, não concordo que "a razão obedece a instintos em indivíduos dentro do padrão da normalidade...". Lembremos que partimos todos do ponto do 'somos humanos', continuamos a ser msm depois das particularidades(que nem tão particulares são)adquiridas.

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  12. Ponto para Laís!

    E ponto para Geórgia, ao menos me fez rir com o negócio do Playstation.

    rsrs

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  13. Ponto para Laís, mas a ideia do meu comentário não era uma reflexão e sim uma piada.
    Ainda bem que Juliano entendeu. Ponto!

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  14. Procuro manter sempre o mesmo nível de humor, mas a culpa não é minha: tem dias que o leitor está mais fraco.

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