“É meio kafkiano esse desenho, né Julião?”, perguntou-me Paulo. E eu gastei um tempo pensando. Definitivamente, “meio” é ainda pouco, tenho de admitir. (Agora eu estou me divertindo, pois estou imaginando quais os desenhos poderão ter passado pela cabeça de vocês. Mas isso não é nenhuma brincadeira de advinha-o-quê, então vamos logo adiante).
Primeiramente, recordemos o que nós pretendíamos significar por kafkiano, naquela discussão. Bem, Franz Kafka é o autor de A Metamorfose, livro que apresenta um homem (Gregor Samsa) que, sem quê nem pra quê, um dia descobre-se um inseto horrível “com dorso duro e inúmeras patas”. Ele não compreende. Dormiu homem, acordou aquilo; como podia compreender alguma coisa? Já que deitado de costas, não conseguia sequer levantar-se (o leitor certamente há de ter visto alguma vez na vida um inseto que por azar caiu de costas). É ao mesmo tempo hilário e horrível o esforço que insetos fazem para voltar à posição original sobre as patas, ao invés de tê-las remando o ar e com a carapaça como o casco de um navio. Gregor, portanto, sentia-se muito preso. Viver era um peso. Estava enjaulado num corpo estranho e não conseguia nem supor o que diabos fazia dentro dele. Viver aquela existência era uma miséria, um mistério e enigma indecifrável.
Mas há ainda outras espécies de prisões. Joseph K., protagonista de outro livro de Kafka, acorda com a notícia que movem um processo (que é o título do livro) contra ele. “Alguém deve ter caluniado” o coitado, pois nem ele havia feito nada de condenável, não sabia por que era processado, nem havia quem soubesse informá-lo. Há dois tipos de pessoas (não, na verdade não. Sempre há mais tipos de pessoas, mas classificá-las por critérios restritos é uma de minhas diversões [nota pessoal de Paulo]): os que preferem sofrer sabendo e os que têm medo da verdade. Saber é um risco. Há uma tensão em saber de tudo. Ignorar, esquecer, é um alívio. Mas não saber é outro tipo de prisão. A própria “liberdade” de K. era uma prisão, à semelhança do que me disse Olíndio uma vez, “às vezes achar que vai sofrer é um sofrimento maior que o sofrimento que a gente está esperando” (ipses lettere). E porque estou falando tudo isso? Já sabem de Kafka, agora tente adivinhar qual é desenho.
Acertou quem pensou n’A Caverna do Dragão. Para aquele que assistiu desenhos animados na Globo dos anos 80 até hoje, que acreditamos ser todos que lêem este blog, não é necessário nenhuma apresentação. Há, eventualmente, a possibilidade de entrar aqui alguém que não o conheça, e por isso vai um esboço: um grupo de jovens se descobre preso em outro mundo. É um mundo cheio de maravilhas (monstros, magos, perigos, desertos, paisagens lindas, etc.), mas ainda assim todos aqueles jovens sonham voltar para casa um dia. Sentem-se presos. Algumas vezes aparece alguma espécie de portal que parece poder levá-los de volta para casa (leia-se: planeta Terra tal qual o conhecemos no século XX), mas sempre a chance deles é desperdiçada. Permanecem presos.
Kafkiano, de acordo com Paulinho, significava que os meninos da Caverna do Dragão estão presos naquele mundo estranho. Inusitadamente, eles viram-se arrebatados para uma existência estranha e horrível, desconcertante e misteriosa. Anseiam desesperadamente por voltar para casa, para uma existência mais familiar (assim como Gregor Samsa queria deixar de ser um inseto horripilante e voltar à condição humana). Mas, e qual é a verdadeira condição humana: estamos aprisionados nesse mundo estranho. Viver é um peso. Estamos presos. Acordamos enjaulados nesse corpo estranho, e nem o cientista, nem o crente, nem o filósofo conseguem sequer supor o que diabos viemos fazer aqui. Viver, absurdo cósmico. Ansiamos por voltar para casa, para uma existência mais familiar - mas tal lugar não existe. Somos errantes, por natureza errantes viandantes alucinados de viver. Viver: miséria, mistério, enigma indecifrável.
Juliano Dourado Santana e Paulo Raviere.
P.S. Para essa postagem que realizei uma brincadeira metalingüística, que Julião não percebeu até agora. Eu cozinhei o coitado em água morna. Nem matei, nem deixei viver. Mais kafkiano impossível. (Mais esclarecimentos com o próprio, na caixa de comentários).
Pra não ter que logar e escrever como um post novo:
ResponderExcluirNuma coisa tanto os evolucionistas como os criacionistas que andam por aqui concordam: os textos são até legais, mas o blog é muito feio. Por isso eu contratei uma designer pra dar um jeito nisso, uma vez que o mofino... vocês já sabem.
Então, qualquer sugestão ou reclamação, tratar com Dona Maria Fulorina, vulgarmente chamada Laís Medeiros, diretamente com ela ou aqui mesmo nesse post.
antes de tudo me submeto a gratificação ao "dono" desse blog, por permitir a postagem de expressões, por mais que comun entre os tolos, incomun a confraria. me refiro a tirinha, desde ja relatando a justificada parceria entre eu e uiliam nessa empreitada expressiva, a proxima tira será dele!
ResponderExcluirentão: Valeu aí, véi!
ota coisa
laisinha que me perdoe, mas ela devia se considerar desafiada a melhorar a estética desse blog, o mufino como cientista politico é um bom desaine(foi de propósito)!
o vazio visual, por aqui, ilustra(ava) bem o momento de uma leitura escrita comun.
mas como poderia diser salesão:
"um toque feminino é sempre bem vindo"
ah sim, sobre kafka!
ResponderExcluirprimeiro e menos importante, por que ele tem o merito de ser referido nesse blog com a estilosa letra "K" e eu não? rsrsrsrs
e outra, lembrei de mission hill, o carinha faz uma charge sobre a banalização do termo "kafikiano".
o que não sei se está acontecendo aqui em referencia a literatura, logo que nao li nenhum dos livros citados a cima, mas assisti(filme) o processo e li(hq) a metamorfose, e esse sentimento de agonia na literatura acho ingenuamente comparado a uma serie animada, logo que o primeiro se trata de uma expressão que sugere um começo e um fim com uma unica linha dramatica(conto, cronica, romance...) e o segundo ter uma longa linha dramatica em segundo plano, sendo essa, usada por uma outra mais objetiva e curta em primeiro plano. ou seja(odeio essa expressão), o drama da serie e o drama dos epsodios, o da serie não pode ter um fim conclusivo e objetivo, nao dominaria a atenção do publico para ver o proximo epsodio, esse que deve ser conclusivo pra fazer sentido ter assistido aquilo.
então analizando assim, aparece uma "porrada" de serie que são kafkianas: lost, arquivo X, uma de linch q esqueci o nome, e otras aí.
o que quero diser é que e o tal do Kafka provoca um efeito diferente por sua linguagem e expressão usada a ser causado esse efeito ser especifica, simplesmente narração atravéz da escrita! (perdão pelo simplesmete)
o filme "o processo" é kafkiano, em seu enquadramento, luz, cor, enredo, interpretação e essas baboseiras do cinema que paulinho identifica melhor que eu.
A hq "a metamorfose" é kafkiana, em seus traços ritimos e ou tras baboseiras de quadrinho que paulinho identifica melhor do que eu.
caverna do dragão, é uma otima serie animada, talvez tenha uma narrativa kafkiana na linha dramatica geral da serie, mas na seire ainda tem traços, desenhos, enquadramento, ritimo, cor e o caralho a quatro! onde não enxergo kafka!
QUE MERDA EU TOU DISENDO?
EU NUNCA LI KAFKA!
Todo mundo diz que nunca viu o último episódio. Se alguém te disse que assistiu, mentiu. Isso porque o último episódio não foi comprado junto com os demais episódios, apesar de ter sido escrito.
ResponderExcluirPara escrever este texto, eu li (sim, ler é possível; assistir, impossível) o roteiro original do último episódio. Bem, o que dizem sobre o mestre do magos ser do Mal são boatos sem fundamentação.
Antes que me permitam, não vou contar o episódio. Mas, só para reafirmar o propósito deste post, eu posso dizer mais: tanto o Mestre dos Magos quanto o Vingador também estão PRESOS.
Fantástico.
Mais kafkiano impossível!
O "dono" do blog é de lascar!
ResponderExcluirKafka tem esse mérito porque eu não consigo escrever com a desestilosa letra "c". Hehehehe. (Fala pra Uilião me mandar a tira logo, você viu o processo que é pra editá-las).
Mission Hill faz uma piada com a banalização da expressão "kafkiana". Onde uma mulher esquece o dinheiro do mercado (ou qualquer coisa parecida) e fala que aquilo é kafkiano . Eu começo falando disso no meu segundo texto, o do truísmo, alguém se lembra?
Quanto ao ritmo, cor, etc. do desenho, realmente é mais fácil enxegar Tolkien que Kafka lá. Mas o sentido que a gente usou, e que realmente tá lá no Caverna é o de prisão. Afinal de contas, sombrio por sombrio, eu não vejo Kafka nos filmes de Tim Burton, por exemplo.
(A série de Lynch deve ser Twin Peaks. Mas é um caso à parte, prefiro inventar uma expressão nova, lynchiana, hehehehe).
jú, eu tenho uma boa limitação quanto a escrever o que eu quero diser(voces tao me ajudando nisso).
ResponderExcluirmas caverna do dragão, sinceramente, nao creio q o proposito estetico seja a agonia kafkiana, mas é permitido leituras pertinentes assim, eu acho ingenua a tal, mas eu deisisto de explicar assim. rsrsrs.
os cara tão tudo preso pq se soltar acaba a serie e nenhum "criador" de serie quer acabar com sua "cria" assim foi varias series sem um fim, como: every body hates cris, som e furia, a primeira versão da grande familia, enfim.
A maioria das vezes os finais são forçados por produtores, que tem outras criações na agulha e força terminar uma serie pra fazer mais dinheiro com outra. parece que arquivo X, que tem uma justificativa com jesus horrivel, e a de lynch foram um caso.
paulim, diser que a estetica de kafka nao se envolve com a de lynch, isso me parece inconcordavel, realmente pode ser lynchiana a estetica de lynch mas me parece pobre ele ser a propria referencia pra exemplo. e tim burton difere de kafka pela infantilização(que alias eu enchi o saco) em tim burton. kafka não narra os traços do quadrinho, creio eu, mas julgo pertinente a referencia de tolkien na tentativa estetica da coisa. (não sei quem eh esse)(foi um chute).
tipo como alan sieber desenharia bem as historias de harvey pekar. harvey não narra os traços.
enfim, sem descordar do argumento da prisão(mesmo achando que seja mais uma estrategia de manutenção da serie), lost e demais series que nao acabam, são tao kafkianas quanto caverna do dragão!
O propósito estético, longe disso. Me parece mais Tolkien mesmo (é o autor do Senhor dos Anéis). Tanto é que tem o rpg da Caverna, um dos mais famosos de todos; e fãs de rpg, em sua gigantesca maioria, são fãs de Tolkien, pergunta pra João Victor. Mas a influência está longe de ser sempre intencional, então a agonia kafkiana e a alegoria da prisão estão válidas. Curiosamente, foi o exemplo de Kafka que Borges usou quando ele escreveu que os precursores de um autor não são necessariamente conhecidos por ele. Harold Bloom chega a dizer que Shakespeare influenciou tudo o que veio existir depois.
ResponderExcluirEu não falei que Lynch não se envolve com Kafka. Só falei que ele tem uma estética própria, talvez merecedora de um adjetivo por si só. Dizer que Daniel Clowes, por exemplo, é "lynchiano" (horrível!), não afirma nada sobre a influência ou não de Kafka em sua obra. (Porém, vale ressaltar que aceitando-se a influência de Kafka em Lynch, dizer a mesma coisa já acarreta numa influência no mínimo indireta de Kafka em Clowes).
Não vi Lost nem Além da Imaginação. Mas pelo que eu ouvi, me parecem semelhantes com alguns temas de Kafka sim. Kafka é beeem famoso (veja a banalização da expressão), dizer que mais de uma coisa tem sua influência não vai desmerecer essa leitura que a gente fez, mesmo porque ela está bem recortada em pontos específicos.
E ainda tem outro ponto que não foi mencionado nos comentários, que é talvez o mais interesante, que é a leitura de Kafka em relação à própria existência...
Sobre a questão de mudança estética do blog... bom, fiz o que achava que ficaria legal. Quem não gostar é só pedir ao editor do blog pra dar seu pitaco e mudar...enfim. Está feito. Sobre o texto... ainda não tive tempo de ler.
ResponderExcluirahuahauua
Exatamente, Paulo: "o mais interessante é a leitura de Kafka em relação à própria existência".
ResponderExcluirSe acaso alguém pensar que somos livres (e não vale o sentido sartriano de que estamos "condenados a ser livres", ele também só quis dizer que estávamos presos, pois ao menos eu não consigo imaginar outro sentido possível para a palavra "condenado!") - Se acaso alguém pensar que somos livres, dizíamos, que tente voltar para casa, à maneira do Hank e Eric, personagens do Caverna.
Simplesmente aparecemos aqui, despertamos para a vida. No próximo Ato desta peça infernal, já estamos de volta ao "camarim", que muitos imaginam ser outro mundo (purgatório, reencarnação, varia de acordo com a cultura), mas é bem mais provável que seja lugar nenhum.
Se eu fosse condenado a uma prisão de segurança máxima, longe de viver deprimido alí, eu tentaria tirar o máximo de proveito. A diferença com a vida é que eu teria esperanças de sair vivo do presído; da vida, não.
ResponderExcluirMas este é o ponto: em ambas as prisões eu podia ter amigos, beber cachaça, fraudar normas, mentir, manipular, sentir afeto, retribuir confiança, etc.
Viver é uma maravilha!
O texto está muito bom e bem escrito, como geralmente estão os textos de Juliano.
ResponderExcluirA caverna do dragão é uma forma muito divertida de representar como estamos presos neste mundo estranho, buscando um lugar que conhecemos, podemos explicar e compreendemos... Além de ser esse um desenho muito engraçadinho tbm, rs.
Ôpa, o texto não é apenas de Juliano, mas de Paulinho tbm. Mas é claro que os elogios também valem pra ele. rsrs.
ResponderExcluirP.S. pra Cabelo:
ResponderExcluirHoje eu tava lendo um texto sobre um poeta contemporâneo e olha o adjetivo que aparece:
http://revistamododeusar.blogspot.com/2009/10/pedro-casariego-cordoba-1955-1993.html
eu achava o Blog mais bonito antes... pelo menos dava pra identificar os títulos dos textos.
ResponderExcluireu também não li o texto
ResponderExcluire também não li kafka, é requisito?
sempre é, Cel!
ResponderExcluirquem se importa? rsrsrs.
é como diz o proncipio daqui:
"basta ser um tolo, ou ter imaginação!"
Cel, só por causa do título?
ResponderExcluirA gente faz um resuminho de dois dos principais livros de Kafka. Não é preciso lê-los antes (não por causa desse texto, talvez por outros motivos). E eu sei que você sempre lê os comentários antes do texto (quando lê o texto), nem precisa dizer, hehehehe.
sou tipo um escritor que nunca leu um livro antes, pior é escrever sem saber ler.
ResponderExcluir.
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...Brincadeira, eu acabo lendo os textos porque os comentários me deixa curioso, mas eu só leio depois. Beijo!
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Acho que vou escrever algo sobre Vinicius!
http://www.youtube.com/watch?v=4P785j15Tzk
ResponderExcluirTales Of Mere Existence
Contos da mera existência!
ResponderExcluirpara anglófonos!
de Moraes?
ResponderExcluirSr. Anônimo, videozinho espetacular! Indispensável a nós, os recém-formados que precisam fazer coisas. A referência a Além da Imaginação... Bem a calhar. Vou ver os outros.
ResponderExcluirMarcelão é humilde. Hora ou outra eu vejo ele falando sobre Bill Bryson, Raul Pompéia, Garcia Marquez... Ele falou que nunca leu um livro pra ganhar a moral de Cabelo (Vinícius, Julião, é ele).
Não, Queiroz mesmo!
ResponderExcluirAh! o Anônimo sou eu!
ResponderExcluirAh, imaginei Pablo. O Sr. Anônimo já é um membro da Confraria.
ResponderExcluirRapaz, esses vídeos são uma maravilha. Tinha planejado de passar a noite lendo, mas só depois que eu assistir tudo. Já vi uns 10. O cara realmente compreendeu a mera existência.
la vem marcelo. pega leve! sou cardiaco!
ResponderExcluire nao espalhe muito nao se nao eu espalho a do teste do bahia!
Paulin,
ResponderExcluiro site de Tales of mere existence é http://www.ingredientx.com/
nesse site tem tudo de Levni Yilmaz, aproveita e faz legenda para os videos que eu não entendo muita coisa! hehehehe
Cabelo, relaxe!
Tu conhece essas coisas não sei de onde (é um erudito)!
ResponderExcluirEssa do teste do Bahia nem eu sei. Mas não vamos começar com as resenhas de infância, pra ninguém ficar me chamando de desagradável.
(Mais tarde alguém me lembra de postar o soneto de Salesão e de mandar o texto do Balaio).
Péééédrinho me passou o endereço do blog e venho aqui freqüentemente ler os textos, que são muito bons!!
ResponderExcluirJuliano, eu fiquei muito curiosa para saber o final da Caverna do Dragão!
Teria sido muito bom se eles tivessem gravado o último episódio...
Agora que fiquei sabendo vou procurar o roteiro!