05 maio 2011

O Mundo em Polvorosa

Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos.
Zé Geraldo, Milho aos Pombos.

Os homens se reúnem em multidões, com ardente entusiasmo, para assistir a uma tragédia: havendo uma execução na rua vizinha, como observa o Sr. Burke, o teatro estaria vazio.
William Hazlitt, Do Prazer de Odiar.

No dia 11 de setembro de 2008, me lembro de mais de uma enquete, feita por um ou outro portal de notícias, que perguntava o que os leitores estavam fazendo no exato momento dos ataques em 2001. Uma ou outra pessoa abria presentes de aniversário, mas a maioria simplesmente viu pela TV. Uma moça contou uma história impressionante de como chegou lá na manhã dos ataques – sua primeira vez em NY –, e ficou hospedada na casa de amigos, a quatro quadras do WTC.
Eu estava em Irecê. Era dia de prova de história e geografia (que eu sempre terminava cedo). Por isso, já estava em casa, jogando Olimpic Gold, por um emulador do Mega Drive, com Hugo Doido, quando minha mãe, que possui uma veia épica (veja aqui), entra em meu quarto, desesperada: “Liga a TV! Estão explodindo tudo lá fora! O mundo vai acabar!”. Eu não dei muita atenção a seus exageros, e por isso não vi ao vivo o segundo ataque.
Abalou-me muito mais quando vi o filme sobre o terrorismo poético de Phillippe Petit, que atravessou as torres numa corda bamba. Também me abalou mais, admito, a morte de Bin Laden, que soube pelo portalzinho de notícias que abre automaticamente quando conectamos no MSN. Claro, pois agora, além de mais velho e (supostamente, apenas supostamente) mais maduro, estava contextualizado com a notícia. Esta foi a mesma maneira que eu soube da chacina de Realengo. Sim, soube por uma notícia em inglês! Por mais que tente manter equilibrados os meus arroubos de nacionalismo – pois seus extremos podem gerar xenofobias e tragédias piores –, não há como ignorar o nome do seu país, num portal onde normalmente só há notícias que não me importam e dicas para adolescentes. Em épocas do lançamento da animação Rio, pensei: “legal, tão falando do Brasil!”. No mesmo momento percebi meu engano. As coberturas nos telejornais foram longas. Creio que as últimas que eu tinha visto assim foram a visita de Obama e os ataques aos morros dos traficantes (sempre o Rio de Janeiro!).
            Mas eis que, apenas algumas semanas depois de Realengo, vejo outra cobertura longa: o mundo só fala no casamento inglês. Foi lindo, até o ranzinza clima londrino resolveu contribuir. Obama não foi. Visitava as vítimas dos furacões que destruíam o seu país. Mas dois dias depois, ele rouba a cena dos ingleses e anuncia a morte de Bin Laden (ironicamente, a expressão em inglês para “roubar a cena” é rain on [nome próprio]’s parade, choveu no desfile dos ingleses). E o que sucede? Coberturas longas (quem mais se lembra de tsunamis e furacões?). Além disso, ninguém sabe, mas, entre os dois dias, morreu o grande escritor Ernesto Sabato. Não chamou tanta atenção do mundo quanto Saramago, mesmo tendo este morrido na época da copa (minha mãe chorou por ele e por Salinger, mas duvido que o tenha feito por Sabato). E as notícias continuam e continuam, mas eu não dou conta de acompanhar (penso nos absurdos extraordinários que ainda verei pelos MSNs e portais da vida: “Invasão alienígena!”, “Jesus voltou, e tem olhos charmosos!”, “O Bahia foi campeão!”).
A sensação que me dá com tudo isso é o inverso da que nos alerta o profetinha em O Bandido da Luz Vermelha, de que “o terceiro mundo vai explodir”. Parece que o mundo inteiro vai explodir, mas nós permaneceremos intactos, pois estamos muito à margem (só explode o Rio de Janeiro). E veja, nem posso alegar que estou num deserto de tédio, pois tive um final de semana cheio (que minhas professoras não saibam, pois lhes devo resenhas): além de ver notícias e correr da chuva, fui num show de rock, numa ópera e numa orquestra, vasculhei a sessão de literatura e de biografias do Brandão e do sebinho da esquina de lá, li umas 100 páginas de Lolita e mais um sem número de textos esparsos, escrevi mais umas 12 de prosa (sem contar esse texto, que veio depois) e a letra para uma canção, me preparei pra uma prova e um seminário, vi dois jogos de futebol e um de futsal, vi pessoas, tomei umas, e, ainda por cima, preparei todas as minhas refeições, dei faxina no apartamento e lavei minhas cuecas.
Mas ainda assim, tudo isso só importa pra mim, e não basta. É preciso ser mais que uma daquelas pálidas existências de que nos falam o biógrafo da Senhora Bovary e os filmes escritos por Kaufman. Claro, não são todos que têm a ventura de casar com pompas reais, de escrever uma obra grandiosa ou de poder anunciar que mandou dar uns tiros na cabeça de seu inimigo número um. Mas os que estão por perto ao menos poderão dizer que estiveram lá. Como o sujeito que nasceu há dez mil anos atrás, com a pele muito bronzeada e com olhos azulados pela catarata, poderão dizer: “mas eu vi, reles mortal, eu vi!” (já eu, não vejo nada: exatamente no dia de minha aula [de dois na semana!], um ônibus explode a poucos passos de onde moro, e eu não estou lá).
A verdade é que esta sensação só me é possível por causa destas coberturas de telejornais, que fazem com que Londres e NY pareçam estar muito mais perto do que são. Imagino dois turistas (não viajantes) conversando, num futuro não sei se próximo ou distante. “Eu estava no Egito em 2011”. “E aí, tomou umas pauladas, pelo menos?”. “Não tive tanta sorte, mas ao menos estava lá”. A diferença entre o turista e o viajante se mede em quantos centímetros cada um esteve de tomar estas pauladas.
Machado de Assis diz que “o mundo era estreito para Alexandre, e um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas”. Pois é. Nem sempre me senti assim. Irecê era enorme, e enquanto eu crescia, ela ia diminuindo, até que e eu vim para Salvador, que já diminuiu demais com o tempo. Para além da emigração em busca de oportunidades ou de melhores condições de vida, esta sensação de não-pertencimento explica a leva de auto-exilados (penso em Wim Wenders, Bob Dylan e Sebald), que às vezes largam mão de certo conforto, para ver in loco o que está acontecendo no mundo. Piza disse esses dias que “pensar enquanto se movimenta é a alma da grandeza”. Não imagino um índio, cujo mundo sempre foi sua tribo, com estes desejos de exploração, quando nem sabem o que há além. Só se pode querer ir Marte depois do conhecimento de que ele existe e que é possível de ser alcançado (como a caverna de Platão).
Para fazer um resumo de tudo, usando o exemplo de quem saiu daqui da Bahia, todos torcemos (o velho nacionalismo) para que Daniel Alves tivesse feito o gol da classificação do Barça. Imagino que ele pudesse ter desejado o mesmo, mas importa mais o fato de estar lá e vencer. Enquanto isso, o mundo pipocando lá longe, e as coberturas jornalísticas vendo tudo de camarote, tentando se aproximar o máximo possível, apenas para que esqueçamos na próxima semana, pois temos cuecas para lavar.

Paulo Raviere

5 comentários:

  1. Gosto demais dos textos de Raviere. Simples (daí a profundidade), coerentes, reflexivos, nos pegam desprevenidos, a refletir com eles. A fina ironia é só mais uma porta para excelentes insights. Nem sei como comentar este texto. Eu me senti assim. Também como observador. No tempo e no espaço. Refletindo.

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  3. "O mundo pipocando lá fora", e eu feito doida tendo que dar conta de tudo isso pra preparar aulas de redação. A sensação é exatamente de que amanhã já tenho outro acontecimento pra chamar de meu e fingir que faz parte da minha vida mais do que realmente é. Vou começar a te contratar pra pensar por mim...(risos).
    Sempre fã de seus escritos alfarrábicos, Paulinho.
    Um cheiro

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  4. Tenho essa vontade de viver o mundo, mas não o mundo enquanto território apenas e sim o mundo mais ligado às pessoas. As minhas pessoas que estão em outros espaços(mundos)(e aquelas que por ventura ainda serão minhas) vendo e estando ali em ocasiões que não pude participar. Isso das notícias e da facilidades de repassá-las adquiridas com a Internet passa um pouco a me confortar, pois ao menos sei dessas ocasiões, mesmo que distantes, ainda por minhas pessoas.(tem a coisa de viajar tb sem sair do canto, vendo as fotografias daqueles que caminharam por lugares que eu nem) Enquanto lia o texto senti esse desejo de ter estado aí contigo no show de rock, na apresentação da orquestra (menos na faxina). Poxa! E essa cantiga é muito esse meu sentimento "isso tudo acontecendo e eu aqui na praça dando milho aos pombos". Dá vontade de sair sem rumo, pra viver o mundo, mas no mesmo momento as teorias de racionalidade me devolvem ao mesmo lugar de onde saí - no instante em que o desejo me levou à Bahia, a Minas Gerais, ao México. Falei, falei e acabei nem dizendo nada...puff

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