Como são prazerosos os filmes de ficção científica, prazerosamente ridículos. É um exercício de humor ver nos filmes de ontem o futuro que vivemos hoje. Tudo é muito extravagante, muito brilhoso, há distopias, computadores egocêntricos e roupas lamentáveis. Claro, são filmes de ficção, é arte, e à arte permitimos qualquer tipo de insensatez - normalmente. Mesmo assim são prazerosos, permitem-nos desenvolver uma espécie de sabedoria atrasada, póstuma, capaz de solucionar problemas que já não existem mais.
Quando revi Fahrenheit 451 de Truffaut senti isto. No filme, tropas de elite dão fim a livros e mais livros, qualquer parágrafo que excite a criatividade é digno da fogueira. Poesia, crônicas, novelas e ensaios, tudo queima muitíssimo bem, mas de longe o melhor comburente é a celulose filosófica. A filosofia é a caixinha das vaidades humanas, dizem. Todas as escolas existem simplesmente para negar a sua antecessora, não tem enraizamento na realidade, dançam e sustentam-se no ar. Que idéia pretensiosa. Por uns momentos aquilo parece interessante, mas logo desisti do exercício. Aperto com força o botão maior do controle remoto e desligo o DVD. Longe da literatura e do cinema, na realidade desencantada pela rotina, lembro-me da vida. A sensação é chata, e pra combater o incômodo deste pensamento ligo a parabólica.
Crise. Em um economiquês sem sotaque o especialista avisa: “O Mercado sofre uma crise de confiança”. Crise. Crise. Crise. Fico estatelado, todas as conversas, todas as novidades tem o mesmo assunto, a mesma ladainha. Não é um problema que me afeta, não que eu perceba, mas como “todo-mundo” anda muito preocupado, e vivo no mundo de “todo-mundo”, nada mais justo que me preocupar também. Sendo o rapaz esforçado que sou trato logo de formar uma opinião própria e imparcial. Vou à fonte da Informação. Assisto o Jornal Nacional, e achando pouco, vejo também a MTV. Com poucos minutos de labor já me sinto um grande conhecedor. Dou boa noite ao casal Bonner e mudo de canal.
O que sei? Sei que tem uma bolha, algumas casas não quitadas, e parece que também têm outros países no meio. Falta entender algumas coisas. Para nós não-economistas, os ingênuos habitantes do dia-a-dia, é difícil imaginar que uma coisa tão sofisticada e imponente como o Mercado, sucumba a uma crise de confiança. Como, meu Deus? E aqueles cálculos, os gráficos e as calculadoras HP? O que fazem aqueles homens de terno naqueles prédios espelhados. Crise de confiança? Mas esta expressão pertence ao universo dos casais mal-sucedidos, das amizades abaladas e dos fieis incrédulos, não àqueles homens brancos de olhos azuis. É um desatino, começo a ter a leve impressão que as Faculdades de Economia se especializaram na formação de palpiteiros, quase profissionais da astrologia: “se você é de capricórnio, não arrisque, invista em ações da Petrobrás”. Pergunto. Qual o motivo da crise Senhor Economista? É simples. Nós demos dinheiro pra quem não podia pagar, como não pagaram, vendemos suas dívidas para quitar suas dívidas. E porque alguém compraria estas dívidas? E você não sabe que a venda de dívidas tá em alta hoje em dia. O mundo da economia não é para qualquer um, tem que ter muita imaginação, ou pra inventar estas coisas, ou pra acreditar nelas. Parece que alguma coisa sustenta-se no ar.
No meio deste deus-nos-acuda, Adams Smith sorri em todos os canais de TV. Voltou aos holofotes. Entrevistas, novelas, reality shows, todos querem saber sobre a Mão Invisível que deveria regular os Mercados. Que Mão? Aquela que conduz tudo. Imagine um jogo de futebol. Sem técnico, sem preparador e sem dirigente. Também não precisa de juiz. Cada jogador tem suas estratégias e se vira pra fazer os seus gols, não tem time e o marcador é individual. Se o baba durar muito tempo, cedo ou tarde, todos balançarão a rede. Eu e você continuamos na torcida, fora do estádio, claro. Este é o habitat da Mão Invisível. O Juiz Estado não precisa se intrometer toda hora, diz o pai da economia e de alguns outros bastardos, a Mão Invisível nos basta. Mas ultimamente ando com algumas suspeitas, às vezes até penso se são mesmo mãos, pelo andar da carruagem não me surpreenderia com patas invisíveis? Ou não, a Mão poderia simplesmente estar coberta pela capa invisível do rei. E vocês sabem. Somente os inteligentes podem ver a capa do rei, principalmente agora.
O diagnóstico parece óbvio, é um momento difícil para marcar gols. Nestas situações aqueles indivíduos com mais soluções que problemas, os legítimos esquerdistas, aparecem. As múmias acordam, sacodem a poeira de seus argumentos e exige a presença de um Juiz, um técnico. Aqui e ali soltam duas ou três palavras com cheiro de mofo. Dizem: Vamos colocar luvas nas mãos invisíveis! O Estado tem que encobrir estas mãos! O que não parece de mau gosto quando nos lembramos das patacoadas dos vendedores de dívidas. Mas cuidado, a vanguarda pode querer trocar uma mão por outra. Nesta brincadeira, cada antigo revolucionário torna-se um novo dedo, e vão botar o dedo em tudo. Não me pergunte o nome dos Bois. Não têm nomes, tem números. Ou melhor, legendas.
Se uma crise não tiver força pra deslegitimar a ordem, as incoerências das antigas estruturas serão repensadas e corrigidas. O que não mata engorda. O novo paradigma se tornará cada vez mais irrefutável, cada vez mais natural. Para os mancebos o sistema não será diferente de uma árvore, um bicho ou uma montanha. Sempre existiu, nasceu pronto, foi Deus que fez e o resto é História. Os processos conflituosos da construção desta hegemonia se perderão. Se isso é bom é ruim não sei dizer, e é sempre bom desconfiar de quem sabe.
Isto tudo são problemas dos vivos. O barbudão que começou a briga ta lá no túmulo, às vezes da umas mexidinhas, mas não é nada demais. Ultimamente está tendo muitos pesadelos com o futuro. Parece que já o esqueceram lá.
Rodolfo Carneiro
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