01 dezembro 2010

Scott Pilgrim vai ao banheiro

“Somos todos adultos aqui, certo?”
                                   Scott Pilgrim (Michael Cera) em Scott Pilgrim contra o Mundo.

Zeitgeist, termo alemão, se refere ao espírito de um tempo ou época, o que é sempre difícil de demonstrar. Phillip Larkin, em seu poema Annus Miriabilis, sobre o ano de 1963, menciona Lady Chatterley e o primeiro álbum dos Beatles. Mas podemos também falar da década de 60 como um todo, e aí não poderia faltar Dylan, Kennedy, Crumb, Luther King, a guerra do Vietnã, as manifestações de 68, os beatniks, a guerra fria, a nouvelle vague, a contracultura, entre tantas outras coisas. Assim, o espírito desta época está representado por ícones, obras representativas e grandes eventos. Se referindo ao Brasil, falamos também da jovem guarda, de Chico Buarque, de Pelé, da bossa e do cinema novo, da ditadura.

O tempo não está dissociado do espaço. Por isso, quando falo de minha geração, não posso falar da época como um todo, mas de tendências. O geek que inventa uma maneira de viabilizar a transmissão de vídeos ao mundo inteiro certamente é mais influente que o roceiro de mesma idade que só quer saber de roubar goiaba. Ambos compartilham a mesma época e o mesmo planeta, mas um fez mais diferença. Não podemos culpar o roceiro. Mudar o mundo nem sempre é uma obrigação.

De qualquer forma, é mais fácil falar do passado quando ele já é velho; talvez esquecido, ultrapassado ou consolidado. O tempo perdido de Marcel Proust. Quando algo ainda é novo, ou ainda está acontecendo, as opiniões divergem. As interpretações são variadas. Já vi muitos nomes pra minha geração: Millennials, geração Y, MTV, “pós-tudo”, mas ainda me reservo a não chamá-la por nome nenhum. Considero-a um grupo composto por pessoas que passaram, principalmente em cidades, sua infância e adolescência entre o final dos anos oitenta e o começo deste milênio. Historicamente, poderia dizer que começou com a queda do muro de Berlim e vai até o 11 de setembro. Mais ou menos. Minha geração não tem certeza de nada. Esses simplesmente são fatos marcantes que podem definir este entreato. Poderia ainda dizer que ela aconteceu entre os videogames de 8-bits e o Playstation.  

A grande batalha, para nós, crianças, era entre Sega e Nintendo; aos um pouco mais velhos, Guns ‘n Roses e Nirvana. Sendo herdeiros de revoluções anteriores, divórcios, televisores e videocassetes em casa, mulheres trabalhando, falar desavergonhadamente de sexo, clipes nonsense não eram coisas estranhas. A narrativa fragmentada de Tarantino já era acessível e comerciável. Nossa base informativa era audiovisual. Eu praticamente aprendi a ler com revistas sobre jogos de videogames (muitos dos quais eu só vim ter acesso depois da internet, com os emuladores). Uma vez, num seminário sobre games, vi que as pessoas suspiravam diante de imagens de jogos como Street Fighter e Monkey Island. Falavam da importância e influência deles como meus professores eruditos falavam de Borges e Cervantes.

Disso tudo começam os problemas. Nós crescemos. Crescemos trancados em casa jogando videogame, agora estamos perdidos. Hoje, possuímos a informação que um velho juntava em vida e a mesma maturidade adolescente. Como se uma coisa compensasse a outra. Não experimentamos como as gerações anteriores. Não fomos à guerra, não enfrentamos milicos, não fomos exilados, não nos escondemos de ninguém, não velamos nossos pensamentos por pressão ou “respeito” a autoridades. Em compensação, eles também não experimentaram como a nossa. Derrotamos Robotnik e salvamos a princesa Peach várias vezes, ganhamos sozinhos campeonatos de basquete, luta, futebol, fórmula 1, várias medalhas de ouro nas olimpíadas, vencemos guerras mágicas, militares, divinas, estelares, e livramos o mundo do tentáculo do mal. Nossa humana necessidade de mitos foi saciada pelos games, onde nós mesmos encarnamos nossos heróis. Enquanto isso, nossos irmãos mais velhos ouviam punk rock na sala de jantar, com os pais, fumando e bebendo despudoradamente, enquanto os ensinavam a usar o Windows 95.

Por isso mesmo, imaginava que um possível revival dos anos 90 seria realizado silenciosamente. Cada um sozinho em seu quarto jogando Mortal Kombat ou Zelda por um computador, ouvindo Blur, Oasis e Mamonas Assassinas. A televisão ligada na MTV para lembrar os velhos tempos em que éramos escravos do horário e do conteúdo televisivo.

Mas me enganei. Parece que crescemos mesmo. E trouxemos nossa experiência conosco. Os nerds são fofinhos, as meninas jogam videogame, ler quadrinhos é cool, ouvimos rock em qualquer lugar. Ainda assim, somos obrigados a fazer qualquer coisa. Nossos pais não nos toleram mais sem fazer nada da vida. Agora, nós produzimos as histórias que gostaríamos de ouvir. Os autores e as obras representativas de minha geração começam a aparecer: Superbad, MSP 50, Daniel Galera, Minusbaby, The Big Bang Theory, Maspoxavida, Apenas o Fim e aquele que, finalmente, me parece ser o grande passo inaugural no revival dos anos 90: Scott Pilgrim.

Surgido primeiramente como uma divertida HQ de Brian Lee O’Malley, Scott Pilgrim é pop até a veia. O nome vem de uma música de banda indie, o desenho é uma mistura de mangá com quadrinho underground, o texto abusa de referências a games, músicas, filmes, outras HQs, propagandas, clipes e o diabo. O filme não usa tantas referências, mesmo porque a mídia não permite (são umas 1000 páginas de quadrinhos!). Em compensação, dialoga melhor com elas. Por se tratar, em sua maioria, de referências audiovisuais, elas ficam melhor na tela.

Não há muito que dizer do enredo: precisa ser visto ou lido. Scott, de 23 anos, arruma uma namorada do colegial e a trai com Ramona Flowers (linda, do cabelo colorido!), por quem se apaixona. Mas para ficar com a moça, ele precisa derrotar seus sete “ex do mal”, como os chefões de jogos 16-bit. Mas Scott é bem aluado. Quando se vê num dilema, sua solução é divagar coisas sem sentido, até chegar à conclusão de que o certo é ir ao banheiro e evitar o conflito. Ou lutar, quando alguém o manda fazer. Comportamento típico adolescente. No mais, só vendo (a trilha do filme é o que há).

Fico feliz em pressentir minha geração como centro de um novo revival. Não agüentava mais o dos anos 80. Esta geração que veio após a minha, a geração playground, a que cresceu falando inglês e que teve acesso a tudo, a da banda larga, música de computador e dos games ultra-realistas, a dos vegetarianos sexualmente indecisos, que está bem representada por Kick-ass, talvez ela torça o nariz para a breguice dos anos 90, assim como eu detesto quase tudo dos 80; mas não deixo de pensar, com um sorriso descarado, que eles estarão um tanto mais perdidos que nós quando chegar sua vez.

Paulo Raviere.